sexta-feira, 8 de janeiro de 2010



FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história das
 violências nas prisões. 13ª ed. Petrópolis: Vozes, 1996, 280

Uma das melhores resenhas que já li sobre o livro de Michel Foucault.Transcrevo abaixo:

Um dos mais originais filósofos franceses do século XX, Michel Foucault pautou sua obra no exame das relações entre os modos de exercício de poder, a constituição de saberes e o estabelecimento da verdade. O corpo de sua obra procurou mostrar que todo conhecimento é contingente às formas de exercício de poder e que tal fato tem como elemento mediador instituições sociais, dispositivos que regulam as relações entre os modos de exercício de poder e a produção de saberes e verdades.


 A análise de Foucault contempla diversos períodos da história, tangenciando-os com a forma de poder que lhes é característica e os saberes e instâncias de verdade resultantes de cada forma.


Na obra Vigiar e punir, Foucault se propõe investigar os contornos que o direito penal ganhou nos regimes absolutistas europeus, contrastando-os com o modo com os contornos que adquiriram nos regimes democráticos que se consolidaram na Europa a partir do final do século XVIII. Descrevendo o modo como os delitos penais foram (e são) assimilados historicamente, Foucault tensiona mostrar e contrastar duas formas de exercício de poder. Cada uma delas se mostra no modo de tratamento concedido ao criminoso.


Michel Foucault

Duas formas de poder são apresentadas à luz do direito penal: nos regimes absolutistas, é delineado um poder que se exercia e se reafirmava por meio do severo exercício da punição; no mundo emergente pós-revolução francesa, vemos a caracterização daquilo que Foucault chama de sociedade disciplinar, uma modalidade de poder que perduraria até nossos dias e que tem como viés em relação ao direito penal a preocupação com o vigiar e disciplinar.


No regime absolutista, encontramos um direito penal que, por oposição ao direito penal medieval, é exercido pela autoridade de um poder judiciário central, totalmente subordinado à figura do rei. Em tal direito, nasce a prerrogativa de todo ato ilícito, de todo delito ser um delito contra o poder centralizado. Todo delito praticado é, acima de tudo, ato ilícito que ousa afrontar o ilimitado poder real. Por isso, uma característica central desse período é a prerrogativa do suplício como forma de sublinhar o papel da punição como mecanismo de revitalização do poder.


Que é um suplício? Pena corporal dolorosa com requintes de atrocidade. Uma vez o inquérito efetivado pela autoridade real e a constatação da autoria de um delito, impõe-se ao réu um suplício cujo grau de atrocidade variará de acordo com o delito praticado. No caso do delito mais grave, o assassinato, o suplício terá as mais nítidas nuances de crueldade. O réu será torturado diariamente das mais variadas formas em praça pública por mais de duas semanas, até que, por fim, tenha os membros atados a quatro cavalos a fim de despedaçar seu corpo, ou outra forma cruel de realizar o cume do espetáculo. Sim, espetáculo! Foucault salienta que o suplício era antes de tudo um grande espetáculo, momento em que a autoridade do rei era restabelecida e fortalecida por uma aterrorizante demonstração de força. A punição tinha a finalidade de punir o crime e também reavivar nas mentes dos súditos o que ocorria com qualquer um que ousasse desafiar a lei, quer dizer, a vontade do soberano.


Apartir do século XVIII, filósofos e juristas começam a se manifestar contra o caráter desumano do suplício. Paulatinamente, surge a idéia de que toda e qualquer forma de punição poderia ser abrandada, não apenas em seu resultado final, mas também no sentido de criar mecanismos que proporcionassem garantias de que o menor número possível de delitos fosse praticado. Surge o que Foucault chama de sociedade disciplinar.


Ela nasce ao final do século XVIII e caracteriza-se como um modo de organizar o espaço, controlar o tempo e obter um registro ininterrupto do indivíduo e de sua conduta. Do ponto de vista do exercício do poder, essa sociedade se caracterizaria por implantar o que Foucault chama de “poder panóptico”. A tese foucaultiana articula o nascimento das ciências humanas como uma conseqüência da sociedade disciplinar.


Segundo Foucault, ao final do século XVIII e início do XIX se instaura na Europa o que podemos chamar de poder panóptico, derivado do Panapticon do jurista britâ-nico Jeremy Bentham. O Panapticon de Bentham é o modelo de um edifício arqui-tetônico em que idealmente se poderiam vigiar e controlar as ações de todos os delinqüentes. Com celas dispostas em torno de um círculo e ao centro uma torre elevada, seu desenho previa que o vigia colocado na torre central podia ver todos os movimentos daqueles trancafiados nas celas, sem que estes pudessem ver seu incontinente observador.



Foucault foi muito perspicaz ao notar que o modelo de seqüestro de delinqüen-tes proposto por Bentham engendrou aquilo que caracterizaria o mote da socieda-de contemporânea: a vigilância, o controle e a correção dos indivíduos. O poder panóptico se basearia na vigilância contínua de todos os indivíduos. Avigilância contínua é o meio que torna possível o pleno controle dos indivíduos. Ela representa um novo ponto de vista do poder, um poder que, em vez de punir um indivíduo que pratique qualquer ato ou infração, tem suas ações previstas, antevistas pelo siste-ma. A vigilância permite um controle dos atos e do grau de engajamento de cada indivíduo ao sistema de poder instaurado. Antevê e determina o que pode e o que não pode o indivíduo fazer. O controle, o monitoramento dos indivíduos torna possí-vel também a correção de suas tendências, reorientando-as na direção estipulada pelo poder panóptico.



Assim, esse poder se legitima por meio do surgimento e da proliferação de uma série de instituições que referendam o modelo do Panapticon. Diversas instituições arraigadas na modernidade seguem o modelo do Panapticon: a fábrica, a prisão, o hospital, a escola.


Essas instituições literalmente seqüestram os indivíduos. Afábrica, as cidades operárias, a escola, o hospital, o quartel, as casas de repouso e os orfanatos vigiam, disciplinam e ordenam a vida do grupo dos indivíduos que lhes são subordinados. O indivíduo é fixado dentro do sistema de produção, construindo sua visão de mundo dentro das normas e saberes constituídos. Opera-se uma inclusão por exclusão.


Segundo Foucault, o poder panóptico se efetiva mediante o cumprimento de algumas funções: o controle do tempo, o controle dos corpos e a instauração de uma polimorfia do poder que inclui um braço epistemológico. Nas instituições panópticas, o indivíduo é abstraído do tempo de sua vida. A escola insere-o muito novo numa rotina de aprendizados e tarefas a serem cumpridas.


O indivíduo, muito novo, é adestrado para participar nas diversas instâncias do sistema de produção. O tempo de sua vida infantil é moldado dentro das prerrogativas das atividades que ele deve realizar na escola e fora dela. Seu caráter é moldado por meio de um jogo de castigos e recompensas.



Posteriormente, quando ocorre a inserção do indivíduo no trabalho de fábrica, esta será uma extensão do que a escola previamente preparou. Seu tempo, definitivamente, não lhe pertencerá. O tempo de sua vida será propriedade da sociedade. Na linha de montagem da fábrica, ele cumprirá uma rigorosa rotina de horários, severamente vigiada, e igualmente recompensada ou punida. Seu escasso tempo fora da fábrica também é predeterminado. Assim é que, fora da fábrica, mais e mais os indivíduos procuram realizar cursos de aperfeiçoamento, requisito para manter o status de “seqüestrado”, além das
modalidades de lazer que mais e mais se tornam uma extensão do padrão econômico e panóptico da sociedade.


Vejamos o confisco do corpo.


Se os indivíduos seqüestrados não possuem o tempo de suas vidas, tampouco possuem seus corpos. No poder panóptico, o corpo do indivíduo é confiscado pela sociedade. Nas escolas e quartéis, ele será moldado de acordo com a função social que ocupará dentro do sistema de produção. Nos hospitais e prisões, a disciplina imposta ao corpo também será minuciosa.


O controle do tempo e do corpo instaura e é instaurado graças a uma polimorfia de poderes. Assim é que um poder econômico claramente se instaura com a insti-tuição das fábricas, e, atrelado a este, um poder político. Ambos os poderes se arti-culam a um poder judiciário que impõe normas, dá ordens e toma decisões. Segundo Foucault, é o sistema judiciário que dá o esqueleto do sistema escolar; afinal, a todo o momento se punem, se recompensam, se avaliam e se hierarquizam os indivíduos.



Por fim, o poder panóptico enseja o surgimento de uma episteme própria. Foucault atribui a seu exercício as circunstâncias que tornaram possível o surgimento das ciências humanas. Encontramos em todas as instituições discipli-nares ligadas ao poder panóptico a produção de um conjunto de saberes. Este se delineia em dois sentidos: ele se exerce a partir dos indivíduos e sobre os indivíduos. Quando se diz que esses saberes são produzidos a partir do indivíduo, é no sentido de as práticas e atividades dos indivíduos dentro de uma instituição serem o subs-trato necessário à elaboração de um saber sobre a própria produção do indivíduo. Esses saberes podem ser qualificados como atuando sobre os indivíduos na medida em que, graças ao seqüestro do indivíduo em instituições panópticas, é possível a elaboração de saberes diversos sobre o indivíduo, tais como a pedagogia, a psicolo-gia, a psiquiatria etc., saberes esses que o definem, qualificam e classificam.


Vemos, assim, que Foucault assume a premissa do conhecimento como uma grande invenção, ferramenta indispensável à legitimação de uma forma de poder, construída graças às diversas modalidades de práticas sociais. Nem o conhecimento nem tampouco a verdade são apregoados como destino natural do homem, referências a pairar no horizonte, espécie de mote de nosso caminhar. Não. O conhecimento seria apenas uma ferramenta do poder. Ele não nasceria de nossa amistosa, curiosa aproximação da realidade, mas seria, antes, produto de nossa ânsia de domínio. Conhecer é dominar, é ferramenta indispensável ao exercício e à manutenção de uma forma de poder.



Enquanto Marx crê que o saber é obstruído por modalidades de práticas sociais (por exemplo, a religião como meio de alienação), Foucault crê que são justamente nossas práticas sociais enquanto instrumento de determinada modalidade de poder que engendram o sujeito e também todo um conjunto de formas de conhecimento e de obtenção da verdade. Foucault apresenta diversas práticas sociais que determinariam a produção de diversos saberes e o estabelecimento de uma série de verdades. Também a essência do sujeito se delinearia com essas práticas.


Em Vigiar e punir, Foucault destaca o direito penal entre as práticas sociais que exerceriam esse papel de arquétipo. Nessa obra, o filósofo francês nos mostra em que medida o modo como uma sociedade pensa e trata determinada questão é sintoma de uma forma de exercício de poder que a direciona.


Vigiar e punir constitui-se numa excelente obra para refletirmos sobre a espinha dorsal da realidade que ora vivemos. Desse modo, vale conferir.


José Fernando da Silva


Professor das Faculdades Integradas IPEP.

Revista Técnica IPEP, São Paulo, SP, v. 6, n. 2,p. 97-101, ago./dez. 2006

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