quarta-feira, 5 de agosto de 2009

A AMIZADE EM TEMPOS SOMBRIOS




“Queria ser o amigo de muitos homens,
mas não o irmão [de fé] de nenhum homem”
(H. Arendt, Tempos sombrios).



“Sem amizade a vida não é nada, pelo menos se quisermos,
de um jeito ou de outro, viver como seres humanos”
(Cícero)


A amizade está em declínio e a solidão está em ascensão. Qualquer um pode constatar isso no mundo contemporâneo. Os laços humanos tornam-se cada vez mais frágeis e efêmeros porque vivemos numa época em que tudo se “liquefaz”, usando a imagem de Z. Bauman. Hoje, antes mesmo que uma amizade se solidifique, ela está condenada a se evaporar frustrando a intenção sincera dos pretensos amigos. O amor também facilmente se evapora. Aliás, a própria vida escorre, rapidamente, sem que possamos aproveitá-la intensamente como parecia acontecer com os antigos.



Vivemos a época das grandes manifestações de massa, das grandes multidões que acorrem aos estádios para assistir ao futebol, ao culto religioso, à banda de rock, ao partido político ou ao carisma de um falso ídolo, mas nunca nos sentimos tão só e sem vínculos autênticos de amizade.




Nos dias de hoje já não importa ter amizades autênticas, mas relacionamentos úteis. O outro é avaliado para ser nosso amigo instrumental, em função de interesses mesquinhos. Importa menos um encontro consumatório, para conversar-por-conversar, do que estar conectado na rede, para trocar e-mails, participar de um chat, ser incluído num grupo do orkut, ou simplesmente jogar, jogar e jogar em rede com os “amigos virtuais”. A conexão da Internet ou do celular promete um especial mais-gozar do que estar “ao vivo” com o outro. Ficar face-a-face está ficando cada vez menos necessário.




Cresce o número de gente que se sente intoxicada de gente, daí cada um inventa uma fuga: um relacionamento de faz-de-conta, contatos apenas virtuais, arrumar um bichinho de estimação, viver em algum lugar solitário. J. D. Salinger, o autor de “O apanhador no campo de centeio”, numa rara e resistente entrevista em 2004, preferiu viver solitário nas montanhas. Sua halitose, seu jeito de ser e o sucesso do livro contribuíram para reforçar sua tendência anti social.




A atitude avessa às pessoas não é adotada apenas por escritores e cientistas; costuma fazer parte de pessoas que vivem o cotidiano acadêmico, não obstante o imperativo de eles terem que conviver com alunos e colegas. “Seria bom trabalhar numa universidade que não tivesse alunos”, diz um pesquisador que odeia ensinar. Outro me confidenciou que não acreditava mais na amizade; outro, diz que somente se interessa conversar com os de “seu nível”. Há aqueles que substituem os amigos pelos “irmãos em Marx”, ou “irmãozinhos da psicanálise segundo Lacan”. Um erudito tentou me convencer de que com a fragmentação irreversível de nossa época resta cada um ficar na sua, em casa, e “conversar” com Platão, Aristóteles, Agostinho, Tomas de Aquino, apenas com gente que abre o caminho da sabedoria e da ascese. Segundo esse erudito “é mais proveitoso conversar com meus amigos, pensadores, do que com especialistas de nossa época”.




Hoje é fácil descartar amizades potenciais. A falta de disponibilidade para a amizade verdadeira é tamanha que torna-se visível a resistência para continuar uma conversa que mal teve um início. Não raro, as poucas amizades que ousam ultrapassar a barreira do estereótipo precisam vencer as contingências que concorrem para descartá-las, ou podem simplesmente serem toleradas por interesses profissionais, institucionais, políticos, acadêmicos, comunitários, ou mesmo familiares. Essas indicações, acima, nada têm a ver com o conceito de amizade.




Fonte: Revista Espaço Acadêmico, Jan 2006

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