sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

As cicatrizes de Guantanamo




Flávio Aguiar




Quando perguntado por quê faziam isso (tortura), um dos guardas, em Guantanamo, respondeu: “Isso é feito exatamente para degradar você. Assim, quando você sair daqui, você terá cicatrizes, e você nunca vai esquecer”.





Precisamos “pensar grande e de ações ousadas”.




Estamos diante de uma dessas “encruzilhadas da história”.




“Os olhos de todos os povos de todas as nações se voltam mais uma vez para nós, esperando ver o que faremos nesse momento, esperando a nossa liderança”.




Essas são palavras do discurso do Presidente Barack Obama perante o Congresso dos Estados Unidos. Ele se referia às medidas necessárias para enfrentar a crise financeira. Mas não é só nessa área que as “ações ousadas” são necessárias.Em entrevista a Amy Goodman, no Democracy Now! (25/02/2009), a jurista Mary Robinson lembrava das medidas efetivas que precisam ser tomadas com relação à prática de torturas no mundo inteiro, mencionando especificamente o caso de Guantanamo e das prisões secretas da CIA espalhadas pelo mundo. Evidentemente ela saudou medidas como a decisão de suspender torturas, bem como o anúncio da disposição de fechar a prisão de Guantanamo, além do envio de George Mitchell para o Oriente Médio como mediador. Mas diante de uma pergunta de Amy sobre se o presidente Bush deveria ser julgado por crimes de guerra, ela respondeu de modo cauteloso, mas firme, que antes de haver um julgamento, era necessário haver uma investigação, e que uma investigação (e independente) era necessária, porque nesse terreno nada pode ficar “under secrecy”.






Mary Robinson criticou severamente o terrorismo, mas criticou com igual severidade os governos que, como os Estados Unidos, passaram a criar o sentido de uma “Nova Normalidade”, como disse o ex-vice presidente Dick Chaney, para definir algo que aceita e legaliza a prática de tortura, os seqüestros, a manutenção de cárceres secretos e o transporte ilegal de prisioneiros de um país para o outro, numa “Operação Condor” em escala global.






Mary Robinson é ex-presidente da República da Irlanda, e ex-presidente da Comissão de Alto Nível da ONU para Direitos Humanos. Neste último cargo ficou durante os primeiros quatro anos de mandato e se dispôs a um segundo mandato. Entretanto, depois de cumprir o primeiro ano do novo período, foi afastada do cargo por pressão dos Estados Unidos, a cujo governo suas críticas passaram a desagradar. Hoje ela preside uma Comissão internacional de Juristas, com membros representantes de mais de 60 países.




Ela lembrou, por exemplo, que há países que negam estar envolvidos na prática de torturas, mas cujos serviços de inteligência usam informações obtidas nessas condições. Especificamente, lembrou o caso do etíope-britânico Binyam Mohamed, recentemente libertado e enviado para a Grã-Bretanha, depois de sete anos de prisão no Paquistão, no Marrocos e em Guantanamo. Também recentemente um tribunal britânico determinou que as provas e evidências da tortura de Binyam permaneçam secretas, dizendo que caso elas viessem a público o serviço secreto norte-americano deixaria de colaborar com o britânico. O caso levantou perplexidade nos meios jurídicos, porque a decisão dos juízes coloca o sistema jurídico britânico numa situação de “chantagem legalmente consentida”, um conceito tão esdrúxulo quanto o daquela “Nova Normalidade”.




O caso se complicou ainda mais pelo anúncio posterior, por parte do atual governo britânico”, de que também não viessem a público as gravações e os registros das discussões no gabinete britânico, em março de 2003, sobre a legalidade ou não da invasão do Iraque.




O caso de Binyam chocou de modo muito violento a opinião pública britânica, porque entre as evidências “recolhidas” está a de que nas torturas a que ele foi submetido no Marrocos houve a participação de agentes britânicos. Supostamente, eles não teriam torturado diretamente a vítima, mas teriam passado as perguntas que deveriam ser feitas a ela, o que caracterizaria, além de uma cumplicidade inominável e covarde, aquela figura que Mary Robinson também definiu como ilegal, qual seja, a de países que não admitem que praticam tortura, mas que usam informações assim obtidas sem qualquer pejo.






Sarah Theater, deputada no Parlamento Britânico pela oposição e “Chairman” do grupo de trabalho parlamentar sobre Guantanamo, em artigo publicado no The Guardian, também de 25/02/2009, lembrou os processos de tortura usados contra Binyam, e o caminho doloroso que ele terá de seguir para se recuperar. Segundo as declarações do ex-prisioneiro, que nunca teve qualquer acusação formal definida contra ele, entre as torturas estava a prática de cortes em seus órgãos genitais com o uso posterior de material químico no local para aumentar a dor.




Quando perguntado por quê faziam isso, um dos guardas, em Guantanamo, respondeu: “Isso é feito exatamente para degradar você. Assim, quando você sair daqui, você terá cicatrizes, e você nunca vai esquecer”.Esperemos que Binyam consiga curar suas cicatrizes. De qualquer modo, elas ficarão para sempre estampadas nas bandeiras dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha.



Flávio Aguiar é correspondente internacional da Carta Maior

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