domingo, 5 de agosto de 2007

Crise de valores


Aproximadamente,55% dos brasileiros assistem à televisão por, no mínimo, 15 horas semanais (mais de duas horas por dia). Além de uma das principais formas de lazer, a telinha é, portanto, uma poderosa fonte de educação. Mas quais os valores que a TV passa aos telespectadores? Para a jornalista e diretora de programação do documentário Caminhos e Parcerias, Neide Duarte, a televisão reflete a mentalidade atual da nossa sociedade, seduzida pelo fenômeno efêmero da celebridade. Mesmo sob o preço da desvalorização da nossa tradição, da nossa identidade.



Muito se discute atualmente sobre a falta de qualidade na programação da TV aberta no Brasil. Algumas emissoras se desculpam dizendo que dão ao público o que ele quer. Você concorda com essa justificativa?


Acho que é uma troca. Quer dizer, a programação reflete mais o que a sociedade quer. Um exemplo é o Big Brother, que nada mais é do que um retrato da nossa sociedade. Da conquista das coisas pelo jeito mais fácil. O pensamento que impera é: alguém tem que me dar alguma coisa e eu vou ganhar com a minha esperteza, o que não dependerá do meu empenho, do meu trabalho, da minha dedicação, do meu amor àquilo que eu estou fazendo. Depende de um lance de sorte!Quem participa do Big Brother acaba sendo tratado como herói. Mas heróis de quê? Por ficar preso numa casa, falando besteira. Isso é valor? Situações são forjadas, como a criação de um romance. Quer dizer que eu posso entrar no jogo e namorar qualquer pessoa que me pedirem, porque o amor não tem nenhuma importância. Os valores que importam são a fama e o dinheiro.


A televisão acaba reforçando essa ilusão?


Sim, aliado ao fenômeno da celebridade, que é muito forte hoje em dia. É uma forma de você se desgrudar da tradição, ou seja, o passado acaba não tendo mais valor. Essa é a lei do mercado! Se você se interessar pelo passado, você não consome. E nós estamos consumindo numa avidez cada vez maior. Num tempo atrás, os atores começavam cedo na profissão e atuavam até ficarem velhos. Hoje em dia é uma rotatividade tamanha que você não sabe o nome dos atores, dos repórteres. Assim, jogamos fora a tradição, a nossa essência, o que somos. Nada mais tem valor. O que importa é a celebridade. Porque o dia em que você for famoso poderá fazer qualquer coisa, escrever um livro ou até ser governador da Califórnia. Enquanto não for, o trabalho, tudo é difícil. É o poder de estar na celebridade, e ela passa de mãos, não fica em ninguém. Porque a gente precisa consumir rápido, então, qual é a próxima atração? O que é superficial acaba predominando, fica difícil se aprofundar nas coisas.



Essa busca frenética pela celebridade pode afetar negativamente a auto-estima dos brasileiros? Quer dizer, se você não é famoso também pode sentir-se menosprezado, impotente, infeliz?


Isso é um negócio muito sério. Principalmente no Nordeste, no sertão, as pessoas realmente se sentem incapazes. Elas têm filhos e acham que alguém vai ter que cuidar disso. Elas se sentem tão miseráveis, tão coitadinhas... E como uma pessoa assim vai trabalhar? O trabalho é para quem tem uma auto-estima boa. Como um país pode crescer se uma parcela enorme da população, que seria ativa, não está em condições por se sentir humilhado, desprezado?


A televisão tem uma parcela de culpa nisso?


Eu acho que sim. A TV reflete a sociedade e vice-versa. Então, a programação reforça a baixa auto-estima dos brasileiros à medida que humilha as pessoas e todo mundo dá risada.


Você está se referindo aos programas de auditório?


Também, mas não somente. Há outros exemplos, como você colocar alguém para responder a questões de conhecimentos gerais. O que aquilo muda se a pessoa souber ou não responder? Certamente terá algum outro tipo de cultura muito mais importante.A sabedoria do povo nordestino, do sertão, é maravilhosa. Agora, isso não tem valor para nossa sociedade. Para uma pessoa que mora lá, é analfabeta, o que tem valor é o que passa na televisão. Coisas que não estão ao alcance dela, aliás. Para conseguir, ela terá que estudar, fazer faculdade. Por outro lado, essas pessoas têm uma sabedoria que a gente não valoriza. Tão importante quanto a de quem vai para a escola. Isso deveria ser incentivado de alguma forma, com projetos, com estímulo. Certamente a partir daí, essas pessoas vão se sentir capazes de cuidar dos seus filhos, do seu bairro, da sua rua, do meio ambiente em que elas vivem, porque o meio ambiente é a nossa casa, nosso bairro, nosso entorno. Nem sempre as pessoas percebem que valores estão sendo passados durante um programa de TV. E a televisão é uma concessão pública, os cidadãos têm o direito de ter acesso a uma programação de qualidade, não? Sem dúvida. Mas eu acho que as pessoas não percebem essa "crise" de valores porque elas ligam a televisão para se divertir. E nessa diversão, vale tudo, até o que é mentira. Reflete uma mentalidade da nossa sociedade, de toda uma geração que está vindo, que busca o prazer acima de tudo.


Falta cultura popular na televisão brasileira?


Concordo plenamente, mas a TV tem que mostrar a cultura popular não como um folclore, do tipo que o apresentador diz: "nós fomos bem longe para conseguir isso", e sim valorizar como uma coisa do dia-a-dia. Senão, passa a impressão, o que não é verdade, de que aquilo é difícil. Se você for para o sertão, todo mundo sabe cantar alguma coisa que você nunca ouviu. Isso tem que ser valorizado como um traço da nossa cultura.


Do jeito como é mostrada hoje, a cultura popular brasileira acaba aparecendo de uma maneira meio engraçada, inusitada. Claro, porque a televisão brasileira cobre só o eixo São Paulo-Rio de Janeiro. No entanto, o que pode parecer estranho para nós, engraçado, é normal e habitual para outros. Já com a nossa cultura (do eixo Rio-São Paulo), todos estão acostumados por causa da TV. Eu estava em Manaus um dia desses e vi pessoas com a camisa do Corinthians, do Flamengo. Eu pensei: "Mas não tem o time daqui?" Claro que tem, mas parece não ter valor. Na tribo dos índios de Manaus, eles torcem pelo Flamengo, parece que eles não valorizam a própria cultura, porque "o mundo" não dá valor para eles.


Quanto ao jornalismo que resolve os problemas públicos, isso não seria paralisante, pois as pessoas acham que ir à TV e denunciar suas mazelas, um buraco na rua, vai resolver o problema?


Mas a televisão não mostra como chegar até o prefeito, quais os direitos de cada cidadão, até que ele possa se mobilizar por conta própria e batalhar por eles.Acho que a TV passa o jornalismo como um instrumento de poder com esse tipo de matéria. A mensagem é: eu faço o papel do Estado, da polícia.

Um comentário:

Fabi´s disse...

É sempre muito bom encontrar blogs que discutem temas atuais e tão pertinentes à sociedade! Gostei muito do seu site, parabéns!

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